Além do peso estratégico do Chile, o que há de emblemático na vitória de Piñera é o caráter da coligação triunfante, ironicamente chamada de Coalizão pela Mudança. Pela primeira vez retornam ao poder forças políticas que deram sustentação direta às ditaduras militares da América do Sul. Não é pouca coisa, definitivamente. Tampouco trata-se de fato isolado. Se analisarmos a cadeia de acontecimentos que marcou o ano passado, encontraremos pistas evidentes de uma contra-ofensiva da direita latino-americana. O artigo é de Breno Altman.
Breno Altman
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Os resultados da eleição presidencial chilena, com a vitória do direitista Sebastián Piñera, repercutem além-fronteira. O triunfo da coalizão neopinochetista também pode ser lido como a primeira vitória relevante das forças conservadores latino-americanas nos últimos dez anos. Ainda que esse campo, no ano passado, tenha vencido batalhas no Panamá e em Honduras, nenhum desses episódios tem o mesmo significado que a conquista do governo na terra de Allende e Neruda.
Essa importância não é ditada pela natureza da aliança política que saiu derrotada, cujos vínculos com o ciclo político favorável à esquerda, aberto pelas vitórias de Chávez e Lula, são praticamente nulos. Afinal, a Concertação nunca passou de aglomerado partidário sob hegemonia do centro católico, submetida a um processo de transição incapaz de promover mudanças fundamentais no modelo econômico e institucional herdado de Pinochet.
Além do peso estratégico do Chile, o que há de emblemático nessa situação é o caráter da coligação triunfante, ironicamente chamada de Coalizão pela Mudança. Pela primeira vez retornam ao poder forças políticas que deram sustentação direta às ditaduras militares da América do Sul. Não é pouca coisa, definitivamente.
Tampouco trata-se de fato isolado. Se analisarmos a cadeia de acontecimentos que marcou o ano passado, encontraremos pistas evidentes de uma contra-ofensiva da direita latino-americana, em diversas ocasiões com o patrocínio ou a cumplicidade do Departamento de Estado norte-americano. São eventos representativos desse cenário a reativação da IV Frota, a instalação de bases militares na Colômbia, o golpe cívico-militar em Honduras, a vitória conservadora no Panamá e, agora, a guinada à direita no Chile.
A esses capítulos já consolidados, outros parecem estar em curso, como a escalada das iniciativas reacionárias para inviabilizar o governo Lugo, no Paraguai, e a administração de Cristina Kischner, na Argentina. Para não falar na incessante política de sabotagem e desestabilização da oposição venezuelana contra o governo Chávez, sob o amparo da Casa Branca.
O que ocorreu no Chile serve, sem dúvida, como estímulo às oligarquias continentais. Basta observamos a reação fogosa dos jornalões brasileiros, que vibram diante da possilidade de se derrotar um candidato governista mesmo no caso de ampla aprovação popular à administração que se deseja continuar. Quanto às correntes progressistas, cabe uma reflexão cuidadosa sobre a caída da Concertação.
O foco dessa análise necessária talvez devesse ser a relação entre hegemonia e aliança. Não foram poucos os momentos nos quais a busca pela direção do processo político, a partir dos programas e valores de esquerda, excluiu ou limitou a construção de alianças capazes de formar maiorias político-sociais, assim descambando para o sectarismo e o isolamento.
Mas os casos inversos não têm sido raros nos últimos tempos. Esses ocorrem quando o objetivo de ampliar ou consolidar alianças, em função de um determinado objetivo tático, esteriliza a busca de hegemonia no Estado e na sociedade, forçando à renúncia programática e de identidade.
Nessa última categoria poderia ser classificada a Concertação, fundada a partir da ruptura do Partido Socialista com o bloco histórico de esquerda e sua subordinação a Democracia Cristã, partido de centro ao qual pertence o candidato derrotado Eduardo Frei.
Mais que uma submissão partidária, eventualmente atenuada quando a presidência coube a Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, ambos socialistas, o que se passou foi uma abdicação político-ideológica que já data de vinte anos. Para se fazer a composição com o centro católico, aceitou-se por uma década a tutela militar sobre a transição, manteve-se vigente a Constituição ditatorial de 1980 e preservou-se a política econômica do pinochetismo.
No fundo, foi um longo período de reformas sem mudanças. O sistema foi recauchutado com medidas de ampliação das liberdades e compensação das injustiças, mas teve preservada sua institucionalidade, sua integração à geopolítica norte-americana e seu modelo rentista.
A conseqüência dessa opção foi uma forte despolitização da sociedade chilena. O campo de disputa estratégica e de valores com a direita praticamente se reduziu ao tema dos direitos humanos. Aos poucos, as únicas coligações aceitas pelo sistema institucional, a Concertação e a direita, se aproximaram programaticamente e criaram uma anódina zona de confluência.
Trocou-se o choque de programas pela concorrência entre projetos e sua forma de administração, em um teatro de conflito cada vez mais desidratado. Esse mesmice tecnocrática acabou por provocar desmobilização e divisão no campo da Concertação, preparando o terreno para o retorno das forças de direita.
Três milhões de jovens sequer se inscreveram para votar. O deputado Marco Enriquez-Ominami, disposto a arregimentar apoio entre os setores cansados desse bipartidarismo cinzento, rompeu com a Concertação e teve quase tantos votos quanto Frei. Outros grupos socialistas também dissentiram em tempos recentes, buscando recuperar a tradicional aliança com os comunistas e outros agrupamentos de esquerda.
A administração de Michelle Bachelet, ainda assim, veio a apresentar elevados índices de aprovação popular, especialmente por conta das políticas sociais. Mas seu candidato, Eduardo Frei, representava a imagem do político atrasado, covarde, sem criatividade. Seu adversário, empresário jovial e bem-sucedido, foi capaz de vender uma imagem de gestor mais aguerrido e confiável. Em um ambiente despolitizado, no qual as ações de governo são sucessos administrativos que não se transformam em ferramentas de hegemonia, a transferência de votos acabou esvaziada pela lógica do processo impulsionado por socialistas e democrata-cristãos.
Claro que o fracasso no governo, refletido pela incapacidade de melhorar a vida das pessoas, não pode ser substituído pela batalha das idéias, pela disputa político-ideológica, pela disseminação de valores ou pela pedagogia de massas . A administração bem-avaliada, porém, quando a luta pela hegemonia é propositadamente esterilizada, com o abandono no enfrentamento entre distintos programas e compromissos de classe, revela-se insuficiente para uma estratégia eleitoral vitoriosa.
A Concertação perdeu porque foi a artífice de uma certa normalização do país, pela qual antigos campos antagônicos, em nome de acanhado pacto de transição, aceitaram um termo comum para seus projetos, individualizando a política e configurando-a em um arena quase técnica, na qual as classes e seus interesses desaparecem do discurso público.
A esquerda chilena pagou um alto preço por essa opção, danificando suas relações internas e seu protagonismo. A direita teve a paciência necessária para fazer da normalidade concertacionista seu caminho de ressurreição, absorvendo parte da agenda oficialista e conquistando para seu candidato até votos de quem apóia a administração Bachelet.
Enfim, essas são algumas das reflexões possíveis sobre a derrota de Frei. Aliás, para deixar de orelha em pé também a progressistas de outras nacionalidades.
Breno Altman é jornalista e diretor do site Opera Mundi