A lição da Conferência de Salvador[1]
Para quem ainda tinha alguma dúvida o descaso e a falta de compromisso da Prefeitura de Salvador com a pauta da Reforma Urbana ficaram mais que evidentes na etapa municipal da 4ª Conferência das Cidades, ocorrida nos dias 1º e 2 desse mês de Dezembro.
Se a não implantação do Conselho Municipal de Salvador, previsto no malfadado PDDU 2007 (Art. 292, inciso II da Lei No 7.400/2008), mesmo com seus conselheiros tendo sido eleitos na 3ª Conferência das Cidades (2007), já havia deixado patente, desde então, a falta de compromisso do Poder Público Municipal em promover uma participação efetiva nas Políticas Urbanas, o episódio recente, ocorrido na 4ª Conferência Municipal de Salvador, de retirada pelo Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano, do parágrafo do Regimento que estabelecia um prazo de 15 (quinze) dias para instauração do referido Conselho pelo Prefeito da Cidade, reiterou a violação sistemática da atual gestão municipal da diretriz estabelecida pelo Estatuto da Cidade de gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento dos planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, tanto como da instituição de órgãos colegiados, previstos na mesma lei (Art. 2º, inciso II e Art. 43, inciso I da Lei Federal No 10.257/2001). Diante disso, a Conferência Municipal de Salvador acabou por constituir-se muito mais num rito pró-forme de cumprimento da agenda institucional proposta pelo Ministério das Cidades, em consonância com os princípios da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), mesmo que se pondere o trabalho indubitavelmente dedicado e comprometido da Comissão Preparatória dessa Conferência, formada majoritariamente por organizações da sociedade civil com atuação em Salvador, por um processo efetivo de participação.
Esta situação nos remete aos desafios colocados para a constituição de um caráter diferenciado do planejamento urbano, traduzido em cidades de fato mais justas, pois se não há objeções quanto ao entendimento da existência de possibilidades de constituição de apropriações espaciais equitativas, a partir da vigência do Estatuto da Cidade, por outro lado não pode-se negligenciar o fato de que na maior parte dos novos planos diretores aprovados sob a égide dessa lei, tem-se a contradição central, nas leis que instituíram esses planos, de haver princípios e diretrizes de afirmação do direito à cidade e do cumprimento da função social da propriedade, porém ao mesmo tempo os instrumentos de democratização do acesso à terra urbanizada não estão regulamentados (ZEIS, regularização fundiária, IPTU progressivo etc). Nestes planos a auto-aplicabilidade de suas definições restringe-se aos parâmetros urbanísticos intensificadores da formação de renda da terra, ao sabor dos interesses privados do mercado imobiliário, vide caso de Salvador onde o PDDU 2007 aumentou os limites dos coeficientes de aproveitamento e dos gabaritos nas edificações da orla marítima de Salvador, resultando na disparada dos preços de imóveis nas localidades da Paralela, Imbuí, Iguatemi, Caminho das Árvores, Pituba, Av. Anita Garibaldi, Via Portuária, Patamares, Pituaçu, Costa Azul, Jaguaribe, Rio Vermelho e Comércio, viabilizando uma produção de espaço construído que só pode ser acessada pelas classes médias e abastadas, em detrimento do benefício da maior parcela da população da cidade, com nenhuma ou baixa renda, que continua alijada do direito à cidade.
Considerando as questões acima, a entusiasta comemoração dos principais movimentos de luta pela moradia e pela reforma urbana, que atuam em Salvador, em relação a Política Municipal de Habitação de Interesse Social, previsto no Plano Diretor referido (ver Título VI Da Habitação), nos pareceu demasiada, já que apesar de tal política incorporar os preceitos do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), encontra-se completamente esvaziada, dada a não regulamentação, como já comentado, dos instrumentos de popularização do acesso à terra urbanizada. Da mesma forma a decisão coletiva das entidades da sociedade civil e organizações do movimento popular em legitimar a 4ª etapa municipal da Conferência das Cidades de Salvador, ao invés de buscar impugná-la, com base no sistemático desrespeito da Prefeitura na sua posição de não implantar o Conselho Municipal de Salvador, configurou um recuo programático da agenda do FNRU. Parece-nos que o caminho da impugnação dessa Conferência e sua realização em outras bases, protagonizada pela sociedade civil, delinearia um caminho mais contundente enquanto forma de resistência e contestação e com vistas a pressionar o Poder Público Municipal para avanços reais da agenda da Reforma Urbana. A postura tímida adotada colabora para que a produção pública concreta de habitação de interesse social e de usos institucionais complementares, que poderia especificar a função social da propriedade, continue apenas no plano das intenções e não se constituindo como tendência mais geral.
Este cenário põe a nu os limites de uma estratégia legalista pelo FNRU (a esse respeito ver “Nunca fomos tão participativos” de Erminia Maricato, 2007), exigindo a atualização da agenda desse fórum estratégico frente às especificidades dos atuais processos de urbanização brasileira (a esse respeito ver “Políticas públicas, arenas e atores sociais: o Fórum Nacional de Reforma Urbana e a agenda pelo direito à cidade” de Orlando Alves Junior, 2009) na perspectiva propiciar a emergência de atores emancipatórios pela disputa dos sentidos dos atuais processos de urbanização, de modo a constituir desdobramentos territoriais instituídos pela emergência de “contra-racionalidades”, capazes de engendrar apropriações equitativas do espaço, marcadas pela solidariedade e por usos coletivos (pra essa perspectiva ver “A Natureza do Espaço” de Milton Santos, 2008). A superação destes limites faz-se crucial para que em Salvador possamos especificar a promoção do direito à cidade, pelo estabelecimento de necessárias e diferenciadas referências políticas e sociais que consigam ir do discurso para a ação, pelo reconhecimento dos diferentes grupos vulneráveis existentes na cidade e pelo atendimento de suas demandas com políticas públicas de promoção dos direitos sociais, oportunizadas pelos vultosos investimentos disponíveis na área do desenvolvimento urbano (PAC, FNHIS, Programa Minha Casa, Minha Vida etc), que instituam uma inserção territorial qualificada e bem localizada dos mesmos.
[1] Por Glória Cecília Figueiredo. Urbanista graduada na UNEB e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA.
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